quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A ‘terapia’ do crack

Menores relatam que, para evitar rebeliões, agentes distribuem pedras da droga em unidades do Degase

POR MAHOMED SAIGG
Rio - A dependência do crack — droga que causa a maior parte das internações de menores infratores no Rio — pode estar sendo alimentada justamente onde deveria ser tratada: nas celas do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase). As pedras da ‘droga da morte’, segundo relatos dos próprios internos, não circulam ali às escondidas, tampouco são vendidas aos adolescentes. Elas foram a ‘receita’ encontrada por grupo de agentes para acalmar os ânimos dos internos durante as frequentes crises de abstinência.






Muitos menores estão cumprindo medida socioeducativa no Degase porque cometeram delitos para sustentar o vício do crack. Droga, porém, é oferecida livremente, segundo eles. Foto: Colin Foster

De acordo com o depoimento do adolescente M., 17 anos, ouvido por O DIA no Educandário Santo Expedito, em Bangu, a droga é distribuída pelos servidores rotineiramente. “Os funcionários sabem que somos viciados, e que se a gente ficar muito tempo sem crack vai arrumar tumulto na cadeia (sic). Todo mundo fica muito nervoso quando dá vontade de fumar e não tem (crack). Por isso eles dão umas pedras pra gente se acalmar”, revelou o garoto, que há três anos é dependente da droga.



O deputado Marcelo Freixo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, que também ouviu o depoimento de M., vai cobrar explicações da direção do Degase e da Secretaria Estadual de Educação. “Vamos exigir que identifiquem e afastem os agentes que estão distribuindo drogas. Isso leva os garotos para um caminho sem volta”, alertou.



O defensor público Carlos Benati também quer mudanças. “Nenhum projeto de ressocialização pode conviver com a tortura e a distribuição de drogas”, frisou.



Procurada pela reportagem do DIA, a direção do Degase informou que “alguns adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação podem receber, cumulativamente, a medida protetiva de tratamento ao uso de drogas”, e que todas as unidades do Degase possuem núcleos de saúde mental, com assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras capacitados para atendimento especializado.
‘ACORDO’ COM INTERNOS



“Os funcionários que não sabem do esquema pensam que é a nossa família que traz as pedras. Eles nem imaginam que são os próprios colegas deles que fortalecem a gente. É como se fosse um acordo que a gente fechou: eles conseguem crack pra gente e ninguém tumultua a cadeia”, explicou outro menor, que experimentou o crack e se viciou dentro do Educandário Santo Expedito.



Laudo constatou tortura


Em nota, a Secretaria Estadual de Educação questionou as agressões sofridas pelo menor S., cuja denúncia foi publicada por O DIA segunda-feira. De acordo com a secretaria, “exame de corpo de delito não constatou marcas de agressão”. 



A informação, no entanto, é contestada pelo Ministério Público, autor do pedido de transferência de S. para outra unidade do Degase.



Tão logo os promotores tomaram conhecimento das agressões, encaminharam o menor para exame de corpo de delito que constatou agressões condizentes com o relato de S. O laudo do IML consta no processo aberto para investigar a tortura contra o adolescente.



Os relatos de tortura nas dependências do Degase chegaram à Presidência da República, que enviou ofício ao MP e à Defensoria Pública, pedindo investigações.



“A gente não vai ‘atrasar’ os caras”



Questionados sobre a identidade dos agentes que distribuem a droga dentro da unidade, os menores se recusam a entregar nomes: “Nem adianta perguntar porque a gente não vai ‘atrasar’ os caras, senão, como vão trazer mais pedras (de crack)?”, reagiu o adolescente A., 17, que diz ter vontade de deixar o vício.



“Quero parar. Mas preciso de ajuda. Sabe qual é o tratamento para o crack aqui? Nenhum. ‘Tu conversa’ 10 minutos com uma pessoa (psicólogas) e vai embora. Depois fica um tempão sem falar com ela. Isso não resolve nada”, reclamou o jovem. “Não dá para aguentar as porradas e os sarros dos agentes aqui dentro sem estar doidão”, emenda.



“A gente é muito esculachado aqui. Olha só o que um funcionário fez no meu braço usando um pedaço de madeira”, mostrou o garoto, revelando uma ferida aberta no braço.